Medeia
(adaptado de Ovídio)
Três vezes roda, três vezes inunda
Na água da fonte os seus cabelos leves,
Três vezes grita, três vezes se curva
E diz: "Noite fiel aos meus segredos
Lua e astros que após o dia claro
Iluminais a sombra silenciosa
Tripla Hecate que sempre me socorres
Guiando atenta o fio dos meus gestos
deuses dos bosques, deuses infernais
Que em mim penetre a vossa força
Pois ajudada por vós posso fazer
Que os rios por entre as margens espantadas
Voltem correndo às suas fontes
Posso espalhar a calma sobre os mares
Ou enchê-los de espuma e fundas ondas
Posso chamar a mim os ventos
Posso largá-los cavalgando nos espaços
As palavras que digo e os gestos
Que em redor do seu som no ar disponho
Torcem longuínquas árvores e os homens
Despedaçam-se e morrem no seu eco
Posso encher de tormento os animais
Fazer que a terra cante, que as montanhas
Tremam e que floresçam os penedos."
Sophia de Mello Breyner Andresen, Dia do mar, 1947.