30.8.06

Existia numa aldeia

um homem muito pobre que vivia com o seu único filho e tinha um cavalo muito bonito. O cavalo era tão bonito que os fidalgos do castelo o queriam comprar, mas ele nunca quis.
- Para mim este cavalo não é um animal, é um amigo. Como é que eu podia vender um amigo?
Certa manhã, vai ao estábulo e o cavalo não está. Na aldeia, todos os vizinhos lhe disseram:
- Nós avisámos-te! Devias tê-lo vendido. Agora roubaram-to... que coisa má!
Ao que o homem responde:
- Bom ou mau, quem pode dizer?
Todas as pessoas fizeram pouco dele, achando que estava a ficar senil, pois começava a não saber distinguir a boa da má sorte. Mas uns dias depois o cavalo apareceu, com uma horda de cavalos selvagens. Tinha fugido para conquistar uma bela égua e depois o resto da manada veio com eles.
- Que sorte! - disseram os aldeões - Que coisa boa te aconteceu!
Ao que o homem respondeu:
- Bom ou mau, quem pode dizer?
O homem começava a ultrapassar os limites do pensamento normal, pensavam os aldeões. Enfim...
O homem e o filho começaram a domar os cavalos selvagens mas, uma semana mais tarde, o filho parte uma perna.
- Que coisa má que aconteceu! - dizem os amigos - Como vais fazer, se o teu filho, a tua única ajuda, não te pode ajudar? Tens mesmo má sorte!
Ao que o homem responde:
- Bom ou mau, quem pode dizer?
Afinal o homem estava mesmo a ficar senil! Como podia isto não ser má sorte?
Pouco tempo depois, os soldados do país chegaram à aldeia e levaram, à força se necessário, todos os jovens disponíveis.
Todos, excepto o filho do nosso homem, que tinha a perna partida.
- Que sorte tens tu! Todos os nossos filhos foram para a guerra e tu és o único a ter o teu filho à tua beira. Os nossos se calhar não voltam...
Ao que o homem responde:
- Bom ou mau, quem pode dizer?

20.8.06




o texto não descreve o que existo


rasga a imagem que trago diante de mim



M. G. Llansol, Onde vais drama-poesia?, 2000.

19.8.06

Fatum, ou não :)

Uma raposa olhou para a sua sombra, ao nascer do dia, e disse: "Preciso de um camelo para o almoço de hoje." E passou a manhã toda a procurar camelos. Mas, ao meio-dia, olhou novamente para a sua sombra e disse: "Um rato bastará."

Kahlil Gibran, O Precursor, 1923.

12.8.06

Homenagem a Ricardo Reis

I

Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo


II

Escuta, Lídia, como os dias correm
Fingidamente imóveis
E à sombra de folhagens e palavras
Os deuses transparecem
Como para beber o sangue oculto
Que nos deixou atentos


III

Ausentes são os deuses mas presidem.
Nós habitamos
Nessa transparência ambígua,

Seu pensamento emerge quando tudo
De súbito se torna
Solenemente exacto.

O seu olhar ensina o nosso olhar:
Nossa atenção ao mundo
É o culto que pedem.


Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual, 1972.
Na rota vadia que o mundo esqueceu
Um porto seguro que não seja eu