23.12.20

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

Álvaro de Campos

2.12.20

Canção da estrada larga

1

A pé e alegre dirijo-me para a estrada larga,

Saudável, livre, o mundo à minha frente,

Diante de mim o longo e castanho caminho leva-me para onde eu quiser.


Daqui em diante nada peço à sorte, ei próprio sou a sorte,

Daqui em diante não mais me lamentarei, nada mais adiarei, de nada precisarei,

Deixo as queixas dentro de casa, as bibliotexas, as críticas impertinentes,

Forte e satisfeito viajo pela estrada larga.


A terra, e nada mais,

Não quero as constelações mais perto,

Sei que estão muito bem onde estão,

Sei que são suficientes àqueles que lhes pertencem.


Mesmo aqui carrego os meus velhos e deliciosos fardos,

Carrego-os, homens e mulheres, carrego-os comigo para onde quer que vá,

Juro que é impossível livrar-me deles,

Deles estou cheio e hei-de enchê-los por minha vez).


[...]


em Folhas de Erva, Walt Whitman

1.12.20

Um monge decide meditar sozinho.

Longe de seu mosteiro, ele toma um barco e vai até ao meio do lago, fecha os olhos e começa a meditar. 

Depois de algumas horas de silêncio imperturbável, 

ele de repente sente o golpe de outro barco batendo no dele. Com os olhos ainda fechados, ele sente a raiva crescer e, quando abre os olhos, está pronto para gritar com o barqueiro que ousou atrapalhar sua meditação. 

Mas quando ele abriu os olhos, 

viu que era um barco vazio, não amarrado, que flutuava no meio do lago...

Nesse momento, o monge alcança a auto-realização e entende que a raiva está dentro dele; 

ele simplesmente precisa da batida de um objeto externo para provocá-lo.

Depois disso, sempre que conhece alguém que irrita ou provoca sua raiva, ele se lembra; 

a outra pessoa não passa de um barco vazio. 

A raiva está dentro de mim.

Thich Nhat Hanh

12.11.20



ZIMA, ADARIO
Forêts paisibles,
Jamais un vain désir ne trouble ici nos coeurs.
S'ils sont sensibles,
Fortune, ce n'est pas au prix de tes faveurs.

CHOEUR DES SAUVAGES
Forêts paisibles,
Jamais un vain désir ne trouble ici nos coeurs.
S'ils sont sensibles,
Fortune, ce n'est pas au prix de tes faveurs.

ZIMA, ADARIO
Dans nos retraites,
Grandeur, ne viens jamais
Offrir tes faux attraits!
Ciel, tu les as faites
Pour l'innocence et pour la paix.
Jouissons dans nos asiles,
Jouissons des biens tranquilles!
Ah! peut-on être heureux,
Quand on forme d'autres voeux?

Jean-Philippe Rameau
Les Indes galantes
Opéra-Ballet en un prologue et quatre actes

2.11.20

... fazer uso da imaginação e pô-la ao serviço do sonho, não para fantasiar ilusões, mas para tornar possível o que o real não oferece e através da imaginação pode ser criado.

Maria Etelvina Santos, prefaciando Fantasmagorias.

28.10.20

Beware, O wanderer, the road is walking too,

said Rilke one day to no one in particular

as good poets everywhere address the six directions.

If you can’t bow, you’re dead meat. You’ll break

like uncooked spaghetti. Listen to the gods.

They’re shouting in your ear every second.

Jim Harrison, After Ikkyu and Other Poems

26.10.20

Mito?


Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

– Camus, O Mito de Sísifo

25.10.20

Non modelé dans sa forme accomplie.

Un poème sommeille en moi

Qui exprimera mon âme entière.

Je le sens aussi vague que le son et le vent

Non modelé dans sa forme accomplie.


Il n’a ni stance, ni vers, ni mot.

Il n’est même pas tel que je le rêve.

Rien qu’un sentiment confus de lui,

Rien qu’une brume heureuse entourant la pensée.


Jour et nuit dans mon mystère intime

Je le rêve, je le lis, je l’épelle,

Et sa vague perfection toujours

Gravite en moi à la frange des mots.


Jamais, je le sais, il ne sera écrit.

Je sais et j’ignore à la fois ce qu’il est.

Mais je jouis de le rêver,

Car le bonheur, même faux, reste le bonheur.


*


The poem


There sleeps a poem in my mind

That shall my entire soul express.

I feel it vague as sound and wind

Yet sculptured in full definiteness.


It has no stanza, verse or word.

Ev’n as l dream it, it is not.

‘Tis a mere feeling of it, blurred,

And but a happy mist round thought.


Day and night in my mystery

I dream and read and spell it over,

And ever round words’ brink in me

Its vague completeness seems to hover.


I know it never shall be writ.

I know I know not what it is.

But I am happy dreaming it,

And false bliss, although false, is bliss.


***

Fernando Pessoa (1888—1935) – Poèmes anglais (Points Poésie, 2011) – Traduit de l’anglais par Georges Thinès

Roubado daqui

Se quiseres conhecer uma pessoa,

escuta-lhe os sonhos.


Mia Couto

20.10.20


Para mudares de vida precisas de deixar que a vida te mude.


Marta Monchacha

19.10.20

Canto ostinato

 ouvir

for all instruments and all performers

by Simeon ten Holt

16.10.20

8.10.20

An Adventure

1.
It came to me one night as I was falling asleep
that I had finished with those amorous adventures
to which I had long been a slave. Finished with love?
my heart murmured. To which I responded that many profound
     discoveries
awaited us, hoping, at the same time, I would not be asked
to name them. For I could not name them. But the belief that they
     existed–
surely this counted for something?

2.
The next night brought the same thought,
this time concerning poetry, and in the nights that followed
various other passions and sensations were, in the same way,
set aside forever, and each night my heart
protested its future, like a small child being deprived of a favorite toy.
But these farewells, I said, are the way of things.
And once more I alluded to the vast territory
opening to us with each valediction. And with that phrase I became
a glorious knight riding into the setting sun, and my heart
became the steed underneath me.

3.
I was, you will understand, entering the kingdom of death,
though why this landscape was so conventional
I could not say. Here, too, the days were very long
while the years were very short. The sun sank over the far mountain.
The stars shone, the moon waxed and waned. Soon
faces from the past appeared to me:
my mother and father, my infant sister; they had not, it seemed,
finished what they had to say, though now
I could hear them because my heart was still.

4.
At this point, I attained the precipice
but the trail did not, I saw, descend on the other side;
rather, having flattened out, it continued at this altitude
as far as the eye could see, though gradually
the mountain that supported it completely dissolved
so that I found myself riding steadily through the air–
All around, the dead were cheering me on, the joy of finding them
obliterated by the task of responding to them–

5.
As we had all been flesh together,
now we were mist.
As we had been before objects with shadows,
now we were substance without form, like evaporated chemicals.
Neigh, neigh, said my heart,
or perhaps nay, nay–it was hard to know.

6.
Here the vision ended. I was in my bed, the morning sun
contentedly rising, the feather comforter
mounded in white drifts over my lower body.
You had been with me–
there was a dent in the second pillowcase.
We had escaped from death–
or was this the view from the precipice?

–Louise Glück, Faithful and Virtuous Night, 2014

1.10.20

Ela vive unicamente assegurada por uma desmesurada confiança. Nesse sentido, a fé tem a forma de uma hipótese. A fé é expectativa. Caminhamos às apalpadelas, como se víssemos o invisível, segundo a bela formulação da Carta aos Hebreus (Heb 11,7).

José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante. O tempo e a promessa.

Mas acho que é belo lutar. Não é das alegrias e dos prazeres que um homem se orgulha. Só o tornam orgulhoso e contente do fundo da alma as dificuldades corajosamente vencidas e os sofrimentos pacientemente suportados. Mas sobre isto ninguém gosta de falar muito.

Robert Walser, O Passeio

Não sou mais do que um que escuta e que espera, mas neste papel sou perfeito, porque aprendi a sonhar enquanto espero.

Robert Walser, Geschwister Tanner

21.9.20

... ao te observares na tua vida diária com um interesse desperto e intenção de compreender em vez de julgar, em total aceitação do que possa emergir, porque já aqui está, encorajas o profundo a vir à superfície, e encorajas a tua vida e a tua consciência a enriquecerem-se com as energias que se encontravam aprisionadas. Este é o grande trabalho da atenção. A atenção remove obstáculos e liberta energias ao trazer entendimento acerca da natureza da vida e da mente. A inteligência é a porta para a liberdade e a atenção desperta é a mãe da inteligência.

Nisargadatta Maharaj

10.9.20

Senhor Poeta

do Zeca Afonso

versão de João Afonso & Luís Galrito com o Barco do Diabo

E todas as outras versões!


Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é


"Dom de iludir", Caetano Veloso

31.8.20

You become

Your beliefs become your thoughts,

Your thoughts become your words,

Your words become your actions,

Your actions become your habits,

Your habits become your values,

Your values become your destiny.


― Mahatma Gandhi

Não é fácil para os humanos compreenderem que os frutos da inteligência procedem do Amor. Penso que uma definição essencial da inteligência seria: A capacidade afetiva de estabelecer conexões com a vida e relacionar a identidade pessoal com a identidade do Universo.

Rolando Toro Araneda

30.8.20

Provérbio

Smooth seas do not make skilful sailors.

5.8.20

Não deixaremos de explorar, e a
finalidade de toda a nossa exploração
será chegarmos aonde começámos
e conhecer esse local pela primeira vez.

T. S. Elliot, "Os quatro quartetos"

22.7.20

No matter what your ability is, effort is what ignates that ability and turns it into an accomplishment. Effort is one of those things that gives meaning to life. Effort means you care about something, that something is important to you and you are willing to work for it. This is something I know for a fact: You have to work hardest for the things you love most.

Carol Dweck

20.7.20

meia-noite todo o dia

Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada.
Esse edifício junto à praia, deixai-o
entregue às ruínas,
às folhas do milho,
ao ar salgado.

Que as crianças possam tropeçar nas lajes soltas
e no átrio ecoe, como uma pedreira,
o desejo de muitas mãos.

Deixai dormir as mariposas dentro de lâmpadas partidas
e as formigas engrossarem pelos cantos
como sal.

Não inventeis mais nada,
nem formas eloquentes de evitar que o bronze oxide.
Aceitai o suor do tempo.

Que algumas coisas apodreçam.
Que os elefantes atravessem a planície.
Que as veias rebentem
do esforço de permanecer em pé.

E que nem tudo se sustente como a rosa
se sustenta de florir.

Deixai, deixai os vários pisos incomunicáveis,
o desvão ser cortejado pelo giz dos aviões,
que a lua pouse ali aberto o crânio,
que lhe bata o sol.

Ainda são precisos templos
onde o pó seja gentil
e incensado
como os pés pela caruma dos pinhais.


Andreia C. Faria em Tão bela como qualquer rapaz, Lisboa: Língua Morta, 2017, pp. 54-55.

10.7.20


A união com a Poesia e não o poema é a finalidade do poeta.

Sophia, Poesia e Realidade, 1960

14.6.20

salvar o mundo


Quando eu nasci, todos os tratados que visavam salvar o mundo já estavam escritos. Só faltava

José de Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro

6.6.20

A paz


não só é melhor do que a guerra, como é infinitamente mais difícil.


Bernard Shaw, Heartbreak House, 1919.

30.4.20

They flow


Frozen River Flows

Dobrinka Tabakova

29.4.20


Quem atravessa o perigo toca a salvação.


Hölderlin, aqui

24.4.20

Tudo sobre sedução


Para uma família ser feliz, é necessário haver sedução. Os filhos têm de ser charmosos para encantar os pais, os pais têm de se esforçar para educar convincentemente os filhos. E marido e mulher, caso queiram permanecer juntos, têm de passar a vida a engatar-se. O mal da família é pensar que aquele amor já é um assunto arrumado.

Miguel Esteves Cardoso, citado por Magda Gomes Dias, aqui

23.4.20

... para não confundir o espelho dos nossos desejos com a ponta do nosso nariz.

roubado daqui

1.4.20

Changes,

however radical they may be, never manage to completely extinguish that which is permanent.

António Barreto

20.3.20



Fairy tales are more than true: not because they tell us that dragons exist, but because they tell us that dragons can be beaten

(Gaiman, in Caroline, 2006, p.5).

24.1.20


na certeza de ser o conhecimento o mais potente dos afectos

Rosa Soares Nunes

18.1.20

roubado

Tu sabes o que é uma janela, Maria? Uma janela abre para fora, não é? É o que tu dizias há pouco quando eu te escutei. Mas uma janela também abre para dentro, Maria. Uma janela abre sempre para os dois lados. E de um lado e de outro estão as coisas.

José Augusto França, Azazel, 1956