20.12.10

Há uma porta aqui em casa

que por ser "de abano" está aberta e presa com um tapete, para não termos de andar sempre a empurrá-la.
O tapete tem um sítio próprio, encastra-se na tijoleira, mas para segurar a porta foi necessário tirar de lá uma parte e colocá-la em cima do chão.
Não adianta puxar a porta quando está presa. Quando quero fechá-la, tenho de primeiro fazer resvalar o tapete para o sítio que lhe é devido, o que liberta a porta, permitindo fechá-la facilmente.
Isto disse-me muito.

11.12.10

Toda a cultura vem a ser a expressão da esperança que temos de nascer outra vez.

Maria Zambrano

20.11.10

moscas

Eu sei onde fica o paraíso, por Roya

Eu sei onde fica o paraíso. Vem-me sempre à memória quando penso na minha infância.

E também sei a morada do Inferno. É onde eu vivo agora.

Eu era uma menininha engraçada, gorducha. Vestia vestidos curtos e calçava sapatos bonitos. Tinha um chapéu-de-chuva colorido decorado com bonecos; era muito engraçado – como também eu era. No Inverno, adorava ir brincar para neve e fazer bolas de neve. Punha um gorro e um cachecol, vestia umas calças quentinhas e um casaco muito quentinho. Parecia um leão, mas o meu pai chamava-me Tigre.

Quando era criança, gostava muito de coisa engraçadas. Por exemplo, gostava de andar sempre a comer. Levava à boca tudo o que apanhava à mão – fosse comestível, ou não fosse. A minha Mãe cozinhava muito bem. As suas sopas eram fantásticas – com um aroma espectacular. A minha Mãe tinha umas mãos suaves e delicadas; sabiam às especiarias que ela usava. Também gostava das tampas das canetas – mas não sei por que não gostava das canetas!

Gostava de usar o baton da minha Mãe. Sempre que a apanhava distraída, pegava no baton e pintava a minha cara toda. Um dia, estava a pintar o meu pescoço e o baton partiu-se. Escondi-o rapidamente debaixo da mesa, mas nesse preciso instante, a minha Mãe apareceu e ralhou comigo. Eu estava a pensar como era fantástica estar a comportar-me como uma adulta; então olhei para o céu e pedi a Deus que me levasse rapidamente para a idade adulta, para poder usar batons sempre que me apetecesse. Também pedi para ter um baton que fosse só meu. Agora, eu tenho muitos batons – mas quase não os uso.

Quando eu era pequenina, apaixonei-me por cabelos compridos. Sonhava deixar crescer o meu cabelo para a lua e sonhava que a lua — porque seria como os meus longos cabelos dourados — se tornasse minha amiga. Ponha fios pretos compridos na minha cabeça e abanava-a, fingindo que eram os meus cabelos. O meu cabelo era castanho, os fios eram pretos, mas não fazia mal. Eu decidi que, quando crescesse, ambas as cores iriam mudar.

Também gostava de usar sapatos altos. Ó, meu Deus, como eu gostava de me ver a andar de sapatos altos. Tac, tac, tac — esta era a voz dos meus sapatos que me transportavam para um mundo de sonho que se tornava realidade por um instante. Eu usei sapatos belíssimos durante algum tempo, mas agora o tac, tac, tac foi silenciado e eu só uso sapatos confortáveis.

Tinha três bonecas: Nazo, Farida e Fátima. Todos os dias, fazia-lhes festas de casamento – tiveram mais de mil maridos! Não sonhava com nenhum marido para mim, mas dava-lhes longos conselhos sobre a vida e os relacionamentos.

Eu partilhava tudo com elas. Queria que as minhas bonecas fossem felizes e elas mantinham-se sempre caladas. Decidi que elas não me podiam contar os seus sonhos porque eram horas de elas irem para cama.

Lembro-me da voz da minha Mãe. O almoço está pronto, filhota. Lava as mãos e vem comer!” Detestava ter de fazer aquela pequena paragem para ir lavar as mãos antes de poder atacar a comida maravilhosa da minha Mãe. Gostava muito da canção do meu gato. Todas as manhãs. Ele cantava Miau, miau.

Gostava de matar moscas ou aprisioná-las! A prisão era feita de papel e Madeira muito fininha e tinha uma porta. Eu era a guarda e era cruel. O meu gato era o meu chefe. Eu dizia-lhe que crimes as moscas tinham feito e pendurava-as na parede.

A vida era doce tal como os chocolates. Mas quando me tornei adulta a vida mudou. A liberdade foi-se. Quando eu me ria, as pessoas diziam que eu era maluca. Quando eu chorava, diziam que eu era uma criança. Quando eu dizia a verdade, gritavam que era mentira. Quando eu dizia que algo estava certo, eles diziam que estava errado. Quando eu amava, diziam que era pecado. É por isso que, para mim, a vida é um Inferno.

Tenho saudades da minha infância. Eu tocava nas estrelas nos meus sonhos. Mas será que eu pensava que as moscas eram criminosas só porque eram moscas?

Retirado de http://www.aaaio.pt/public/ioand735.htm

Afghan Women's Writing Project http://www.awwproject.org./

9.10.10

Díptico para Bill Evans

I

Tocava
Muito inclinado
Como quem ouve
Cada vez mais fundo

II

Não tocava


Abria um espaço
Que nos permitia ouvir


Alberto de Lacerda in POEZZ - Jazz na Poesia em Língua Portuguesa, 2004.

9.9.10

Maria da Fonte

(ou Será que é desta?! mas sem monarquismos necessariamente)

Viva a Maria da Fonte
Com as pistolas na mão

Para matar os cabrais

Que são falsos à nação

É avante Portugueses
É avante sem temer

Pela santa Liberdade

Triunfar ou perecer

Viva a Maria da Fonte
A cavalo e sem cair

Com as pistolas à cinta

A tocar a reunir

Já raiou a liberdade
Que a nação há-de aditar

Glória ao Minho que primeiro

O seu grito fez soar

Cantada por Vitorino aqui.

31.8.10

Ao António, com saudade

- Que a benção de Deus e a minha também fiquem com esta criança. Que viva para ver a luz do Altíssimo. Que ame a sua vida. - Deteve-se por um momento. - Agora, Joseph, podes ir para o Oeste. Já nada te prende a mim.

A Um Deus Desconhecido, Steinbeck.

3.8.10

Do all the things commanded to you till you become self-taught and self commanded, and till you learn to make each word a prayer, each deed a sacrifice.

The Book of Mirdad

1.8.10

Cálice

ver

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue


Como beber dessa bebida amarga

Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda

De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça


Gilberto Gil / Chico Buarque

ANA II (Homenagem a Jorge de Sena)

ver

O mar não é tão fundo que me tire a vida
Nem há tão larga rua que me leve a morte
Sabe-me a boca ao sal da despedida
Meu lenço de gaivota ao vento norte

Meus lábios de água, meu limão de amor
Meu corpo de pinhal à ventania
Meu cedro à lua, minha acácia em flor
Minha laranja a arder na noite fria

António Lobo Antunes, cantada por Vitorino

15.6.10

A ordem é a primeira lei do Universo. A. Pope
É a teoria que decide aquilo que podemos observar. Einstein

28.5.10

'For words, like Nature, half reveal
And half conceal the Soul within'

Lord Alfred Tennyson, In Memoriam A.H.H.

21.4.10

The Sunlight on the Garden

The sunlight on the garden
Hardens and grows cold,
We cannot cage the minute
Within its nets of gold,
When all is told
We cannot beg for pardon.

Our freedom as free lances
Advances towards its end;
The earth compels, upon it
Sonnets and birds descend;
And soon, my friend,
We shall have no time for dances.

The sky was good for flying
Defying the church bells
And every evil iron
Siren and what it tells:
The earth compels,
We are dying, Egypt, dying

And not expecting pardon,
Hardened in heart anew,
But glad to have sat under
Thunder and rain with you,
And grateful too
For sunlight on the garden.

Louis MacNeice

13.4.10

O que é ser Real?

O que é ser Real? – perguntou um dia o Coelho, quando se encontravam deitados lado a lado, perto do resguardo da lareira do quarto das crianças (…) será ter coisas dentro de nós e, do lado de fora, o manípulo do mecanismo que o faz funcionar?
Ser Real não tem a ver com a forma como és feito – disse o Cavalo – é uma coisa que te acontece. Quando uma criança gosta de ti durante muito, muito tempo, não apenas para brincar, mas porque realmente gosta de ti, então tornas-te Real
Isso magoa? – perguntou o Coelho.
Às vezes – respondeu o Cavalo, porque dizia sempre a verdade – mas quando se é Real, não nos importamos que nos magoem
Acontece assim de repente, como quando se dá corda, ou a pouco a pouco? – interrogou o Coelho.
Não acontece tudo de uma vez – disse o Cavalo – vai acontecendo. Demora muito tempo. Por isso não sucede com muita frequência às pessoas que são frágeis, muito nervosas ou que têm que ser tratadas com muito cuidado. Em geral, quando finalmente conseguimos ser reais o nosso pelo já caiu quase todo, de tantos carinhos e afagos que nos fizeram. E os nossos olhos descaem, ficamos muito puídos e com as articulações moles. Mas nada disso é importante, porque a partir da altura em que se é Real não se pode ser feio, excepto aos olhos de quem não compreende.
- Suponho que sejas Real – prosseguiu o Coelho, logo se arrependendo do que disse, por pensar que o Cavalo podia ficar sentido. Mas ele apenas sorriu.
O tio do rapaz tornou-me Real – disse – Isso foi há muitos, muitos anos, mas uma vez que se é Real, nunca mais se deixa de o ser. Dura para sempre.

Margery Williams – Velveteen Rabbit (excerto)

História contada pela Meryl Streep (em inglês; esta parte está pelo minuto 4)

17.3.10

Colors

My skin is kind of sort of brownish
Pinkish yellowish white.
My eyes are greyish blueish green,
but I'm told they look orange in the night.
My hair is reddish blondish brown,
but it's silver when its wet,
And all the colors I am inside
Have not been invented yet.

Shel Silverstein, Where the Sidewalk Ends, 1974.

9.3.10

Ice

ouvir

The ice is thin come on dive in
underneath my lucid skin
the cold is lost, forgotten

Hours pass days pass time stands still
light gets dark and darkness fills
my secret heart forbidden...

I think you worried for me then
the subtle ways that I'd give in
but I know you liked the show
tied down to this bed of shame
you tried to move around the pain
but oh your soul is anchored

The only comfort is the moving of the river
You enter into me, a lie upon your lips
offer what you can, I'll take all that I can get
only a fool's here...

I don't like your tragic sigh
sas if your god has passed you by
well hey fool that's your deception
your angels speak with jilted tongues
the serpent's tale has come undone
you have no strength to squander

The only comfort is the moving of the river
You enter into me, a lie upon your lips
offer what you can, I'll take all that I can get
only a fool's here to stay
only a fool's here to stay
only a fool's here...

Sarah Mclachlan

8.3.10

Coral

Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.

Sophia de Mello Breyner, in Coral, 1950

Danças sagradas

Mesmo não reconhecendo na resposta a pergunta, ela pode, ainda assim, estar a ser correspondida.

26.2.10

Landslide


I took my love, I took it down
Climbed a mountain and turned around
And I saw my reflection in the snow-covered hills
'Till the landslide brought me down

Oh, mirror in the sky
What is love?
Can the child within my heart rise above?
Can I sail through the changing ocean tides?
Can I handle the seasons of my life?

Well, I've been afraid of changing
'Cause I've built my life around you
But time makes you bolder
Even children get older
And I'm getting older, too

Take my love, take it down
Climb a mountain and turn around
And If you see my reflection in the snow-covered hills
Well the landslide brought me down

If you see my reflection in the snow-covered hills
Well maybe
The landslide will bring you down

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Avalanche

Peguei no meu amor e desmontei-o
Subi a uma montanha e voltei-me
Vi o meu reflexo nas encostas cobertas de neve
Até a avalanche me derrubar

Oh, espelho no céu
o que é o amor?
Conseguirá a criança do meu coração comandar?
Conseguirei navegar do oceano as diferentes marés?
Conseguirei lidar com as estações da minha vida?

Sim, tenho tido medo de mudar
Porque construí a minha vida em teu redor
Mas o tempo torna-nos mais corajosos
Até as crianças envelhecem
E também eu estou a envelhecer

Leva o meu amor e desmonta-o
Sobe a uma montanha e volta-te
E se vires o meu reflexo nas encostas cobertas de neve
Foi a avalanche que me derrubou

Se vires o meu reflexo nas encostas cobertas de neve
Então talvez
A avalanche venha a derrubar-te

Stevie Nicks, 1975.

21.2.10

Mistério

THEN said Almitra, Speak to us of Love.

And he raised his head and looked upon the people, and there fell a stillness upon them.

And with a great voice he said:

When love beckons to you, follow him,
Though his ways are hard and steep.

And when his wings enfold you yield to him,
Though the sword hidden among his pinions may wound you.

And when he speaks to you believe in him,
Though his voice may shatter your dreams as the north wind lays waste the garden.

For even as love crowns you so shall he crucify you.
Even as he is for your growth so is he for your pruning.
Even as he ascends to your height and caresses your tenderest branches that quiver in the sun,
So shall he descend to your roots and shake them in their clinging to the earth.

Like sheaves of corn he gathers you unto himself.
He threshes you to make you naked.
He sifts you to free you from your husks.
He grinds you to whiteness.
He kneads you until you are pliant;
And then he assigns you to his sacred fire, that you may become sacred bread for God's sacred feast.

All these things shall love do unto you that you may know the secrets of your heart, and in that knowledge become a fragment of Life's heart.

But if in your fear you would seek only love's peace and love's pleasure,
Then it is better for you that you cover your nakedness and pass out of love's threshing-floor,
Into the seasonless world where you shall laugh, but not all of your laughter, and weep, but not all of your tears.

Love gives naught but itself and takes naught but from itself.
Love possesses not nor would it be possessed;
For love is sufficient unto love.

When you love you should not say, "God is in my heart," but rather, "I am in the heart of God."

And think not you can direct the course of love, for love, if it finds you worthy, directs your course.
Love has no other desire but to fulfil itself.

But if you love and must needs have desires, let these be your desires:
To melt and be like a running brook that sings its melody to the night.
To know the pain of too much tenderness.
To be wounded by your own understanding of love;
And to bleed willingly and joyfully.
To wake at dawn with a winged heart and give thanks for another day of loving;
To rest at the noon hour and meditate love's ecstasy;
To return home at eventide with gratitude;
And then to sleep with a prayer for the beloved in your heart and a song of praise upon your lips.

-excerpt from The Prophet, by Kahlil Gibran


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Então Almitra disse, Fala-nos do Amor

E ele ergue a fronte e olhou para a multidão, e um silêncio caiu sobre todos.

E disse, com uma voz forte:

Quando o amor vos chamar, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam agrestes e escarpados.

E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos,
ainda que a espada escondida na sua plumagem possa ferir-vos.

Enquanto vos falar, acreditai nele;
embora a sua voz possa despedaçar os vossos sonhos
como o vento norte devasta os jardins.

Pois assim como o amor vos engrandece, também vos crucificará.
Assim como é o vosso crescimento é também a vossa poda.
Assim como se alcança a vossa altura e acaricia os vosso ramos mais tenros que se agitam ao sol,
também penetrará até às vossas raízes e sacudirá o seu apego à terra.

Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo para vos livrar do joio.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.
E entrega-vos então ao seu fogo sagrado para poderdes ser pão sagrado no festim sagrado de Deus.

Tudo isto vos fará o amor para poderdes conhecer os segredos do vosso coração, e por este conhecimento vos tornardes um fragmento do coração da Vida.

Mas se no vosso medo buscais apenas a paz do amor e o prazer do amor,
Então seria melhor para vós que cobrísseis a vossa nudez e abandonásseis a eira do amor,
Para o mundo sem estações onde podereis rir, mas nunca todos os vossos risos, e chorar, mas nunca todas as vossas lágrimas.

O amor nada dá senão de si próprio e nada recebe senão de si próprio.
O amor não possui nem se deixa possuir,
Porque o amor basta ao amor.

Quando ameis não digais “Deus está no meu coração” mas sim “Estou no coração de Deus.”

E não penseis poder guiar o rumo do amor, pois o amor, se vos vir dignos, determinará ele próprio o vosso rumo.
O amor não tem outro desejo senão consumar-se.

Se, contudo, amardes e tiverdes desejos, sejam estes os vossos desejos:
Fundir-se e ser um regato que corre e canta a sua melodia à noite.
Conhecer a dor da excessiva ternura.
Ser ferido pela sua própria compreensão do amor;
E sangrar de bom grado e alegremente.
Acordar de madrugada com o coração alado e dar graças por outro dia de amor;
Descansar ao meio-dia e meditar no êxtase do amor;
Voltar a casa à tardinha com gratidão;
E adormecer tendo no coração uma prece pelo bem-amado e nos lábios um canto de louvor.

Khalil Gibran, O Profeta.

7.1.10

Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo,
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo,
espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanhe ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de Janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade