O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.
Mario Quintana
O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.
Mario Quintana
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
Gilberto Gil
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
Sophia, Junho de 1974
ouvindo Capicua, n'O Poema Ensina a Cair
...temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.
Boaventura de Sousa Santos.
Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003: 56.
Tiziano Terzani, um conhecedor de mão cheia da Ásia Oriental, em Disse-me um Adivinho (Tinta-da-China, 2009): “Não é de admirar que a depressão seja hoje um mal tão comum. É quase reconfortante. É sinal que no íntimo das pessoas ainda resta o desejo de serem mais humanas”.
Roubado daqui
Einstein defendia que “O acaso é a nossa ignorância”. Concordo. Não me parece importante dar um nome à força que mexe os cordelinhos. O importante é sentir. E saber observar. Se a maioria das pessoas não se interessa pelas aves que chegam e que partem, pelos seus diálogos e chamamentos, como podemos esperar que reparem em brisas e direções do vento? Mas concordam, sem avaliar, que “Nada se perde; tudo se transforma”. Precisamos da muleta “acreditar”? O hábito faz o monge. Mas o “hábito” vai para além da roupa, também é sinónimo de repetição das mesmas tarefas – e isso é que, mais do que tudo, faz o monge.
Roubado daqui (dos Comentários).
Medeia
(adaptado de Ovídio)
Três vezes roda, três vezes inunda
Na água da fonte os seus cabelos leves,
Três vezes grita, três vezes se curva
E diz: "Noite fiel aos meus segredos
Lua e astros que após o dia claro
Iluminais a sombra silenciosa
Tripla Hecate que sempre me socorres
Guiando atenta o fio dos meus gestos
deuses dos bosques, deuses infernais
Que em mim penetre a vossa força
Pois ajudada por vós posso fazer
Que os rios por entre as margens espantadas
Voltem correndo às suas fontes
Posso espalhar a calma sobre os mares
Ou enchê-los de espuma e fundas ondas
Posso chamar a mim os ventos
Posso largá-los cavalgando nos espaços
As palavras que digo e os gestos
Que em redor do seu som no ar disponho
Torcem longuínquas árvores e os homens
Despedaçam-se e morrem no seu eco
Posso encher de tormento os animais
Fazer que a terra cante, que as montanhas
Tremam e que floresçam os penedos."
Sophia de Mello Breyner Andresen, Dia do mar, 1947.
Are you willing?
This winter
the loons came to our harbor
and died, one by one,
of nothing we could see.
A friend told me
of one on the shore
that lifted its head and opened
the elegant beak and cried out
in the long, sweet savoring of its life
which, if you have heard it,
you know is a sacred thing.,
and for which, if you have not heard it,
you had better hurry to where
they still sing.
And, believe me, tell no one
just where that is.
The next morning
this loon, speckled
and iridescent and with a plan
to fly home
to some hidden lake,
was dead on the shore.
I tell you this
to break your heart,
by which I mean only
that it break open and never close again
to the rest of the world.
"Lead", de Mary Oliver, em New and Selected Poems, Volume Two
roubado daqui
[...] porque não há como viver com as consequências para perceber a razão de ser das coisas
Isabel Stilwell, roubado daqui.
Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.
Sophia
Roubado daqui
it degrades, disintegrates, or else it is capable of creating a process of metamorphosis. The probable is disintegration. The improbable but possible is metamorphosis.
Edgar Morin, roubado a António Nóvoa
de Nicholas Lens & Nick Cave
ouvir esta e todas as outras!
Where are you?
Where are you?
Become yourself
Become yourself
So I can see you
Where are you?
Become yourself
Where are you?
Where are you?
Where are you?
Become yourself
So I can see you
So I can see you
'Cause you got me marching
You made me move
Shadow boxing, wanna love
The top of the proof
You got me talking
You know the truth
You're a speechless crazy pantomine
Priest without a tooth
You got me walking
You made me smooth
Like a satellite plastic ping-pong ball
Bouncing down at you
Sliver Lane
I'm back again
de Sophie Hunger
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão ,
Quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e não guardo o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Cecília Meireles
roubado daqui
ouvir Grave digger, de Dave Matthews
1
A pé e alegre dirijo-me para a estrada larga,
Saudável, livre, o mundo à minha frente,
Diante de mim o longo e castanho caminho leva-me para onde eu quiser.
Daqui em diante nada peço à sorte, ei próprio sou a sorte,
Daqui em diante não mais me lamentarei, nada mais adiarei, de nada precisarei,
Deixo as queixas dentro de casa, as bibliotexas, as críticas impertinentes,
Forte e satisfeito viajo pela estrada larga.
A terra, e nada mais,
Não quero as constelações mais perto,
Sei que estão muito bem onde estão,
Sei que são suficientes àqueles que lhes pertencem.
Mesmo aqui carrego os meus velhos e deliciosos fardos,
Carrego-os, homens e mulheres, carrego-os comigo para onde quer que vá,
Juro que é impossível livrar-me deles,
Deles estou cheio e hei-de enchê-los por minha vez).
[...]
em Folhas de Erva, Walt Whitman
Um monge decide meditar sozinho.
Longe de seu mosteiro, ele toma um barco e vai até ao meio do lago, fecha os olhos e começa a meditar.
Depois de algumas horas de silêncio imperturbável,
ele de repente sente o golpe de outro barco batendo no dele. Com os olhos ainda fechados, ele sente a raiva crescer e, quando abre os olhos, está pronto para gritar com o barqueiro que ousou atrapalhar sua meditação.
Mas quando ele abriu os olhos,
viu que era um barco vazio, não amarrado, que flutuava no meio do lago...
Nesse momento, o monge alcança a auto-realização e entende que a raiva está dentro dele;
ele simplesmente precisa da batida de um objeto externo para provocá-lo.
Depois disso, sempre que conhece alguém que irrita ou provoca sua raiva, ele se lembra;
a outra pessoa não passa de um barco vazio.
A raiva está dentro de mim.
Thich Nhat Hanh
said Rilke one day to no one in particular
as good poets everywhere address the six directions.
If you can’t bow, you’re dead meat. You’ll break
like uncooked spaghetti. Listen to the gods.
They’re shouting in your ear every second.
Jim Harrison, After Ikkyu and Other Poems
Un poème sommeille en moi
Qui exprimera mon âme entière.
Je le sens aussi vague que le son et le vent
Non modelé dans sa forme accomplie.
Il n’a ni stance, ni vers, ni mot.
Il n’est même pas tel que je le rêve.
Rien qu’un sentiment confus de lui,
Rien qu’une brume heureuse entourant la pensée.
Jour et nuit dans mon mystère intime
Je le rêve, je le lis, je l’épelle,
Et sa vague perfection toujours
Gravite en moi à la frange des mots.
Jamais, je le sais, il ne sera écrit.
Je sais et j’ignore à la fois ce qu’il est.
Mais je jouis de le rêver,
Car le bonheur, même faux, reste le bonheur.
*
The poem
There sleeps a poem in my mind
That shall my entire soul express.
I feel it vague as sound and wind
Yet sculptured in full definiteness.
It has no stanza, verse or word.
Ev’n as l dream it, it is not.
‘Tis a mere feeling of it, blurred,
And but a happy mist round thought.
Day and night in my mystery
I dream and read and spell it over,
And ever round words’ brink in me
Its vague completeness seems to hover.
I know it never shall be writ.
I know I know not what it is.
But I am happy dreaming it,
And false bliss, although false, is bliss.
***
Fernando Pessoa (1888—1935) – Poèmes anglais (Points Poésie, 2011) – Traduit de l’anglais par Georges Thinès
Roubado daqui
1.
It came to me one night as I was falling asleep
that I had finished with those amorous adventures
to which I had long been a slave. Finished with love?
my heart murmured. To which I responded that many profound
discoveries
awaited us, hoping, at the same time, I would not be asked
to name them. For I could not name them. But the belief that they
existed–
surely this counted for something?
2.
The next night brought the same thought,
this time concerning poetry, and in the nights that followed
various other passions and sensations were, in the same way,
set aside forever, and each night my heart
protested its future, like a small child being deprived of a favorite toy.
But these farewells, I said, are the way of things.
And once more I alluded to the vast territory
opening to us with each valediction. And with that phrase I became
a glorious knight riding into the setting sun, and my heart
became the steed underneath me.
3.
I was, you will understand, entering the kingdom of death,
though why this landscape was so conventional
I could not say. Here, too, the days were very long
while the years were very short. The sun sank over the far mountain.
The stars shone, the moon waxed and waned. Soon
faces from the past appeared to me:
my mother and father, my infant sister; they had not, it seemed,
finished what they had to say, though now
I could hear them because my heart was still.
4.
At this point, I attained the precipice
but the trail did not, I saw, descend on the other side;
rather, having flattened out, it continued at this altitude
as far as the eye could see, though gradually
the mountain that supported it completely dissolved
so that I found myself riding steadily through the air–
All around, the dead were cheering me on, the joy of finding them
obliterated by the task of responding to them–
5.
As we had all been flesh together,
now we were mist.
As we had been before objects with shadows,
now we were substance without form, like evaporated chemicals.
Neigh, neigh, said my heart,
or perhaps nay, nay–it was hard to know.
6.
Here the vision ended. I was in my bed, the morning sun
contentedly rising, the feather comforter
mounded in white drifts over my lower body.
You had been with me–
there was a dent in the second pillowcase.
We had escaped from death–
or was this the view from the precipice?
–Louise Glück, Faithful and Virtuous Night, 2014
Ela vive unicamente assegurada por uma desmesurada confiança. Nesse sentido, a fé tem a forma de uma hipótese. A fé é expectativa. Caminhamos às apalpadelas, como se víssemos o invisível, segundo a bela formulação da Carta aos Hebreus (Heb 11,7).
José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante. O tempo e a promessa.